"Algun dia até,não somente os meus escritos,mas a minha vida e todo o complicado segredo do seu mecanismo serão minuciosamente estudados."Isso foi o que Kierkegaard disse de si mesmo. E a profecia tornou-se verdadeira com o existencialismo contemporâneo , que se propôs explicitamente como uma Kierkegaard-Renaissance, trazendo novamente ao primeiro plano, no palco da filosofia, o pensamento daquele filósofo solitário que foi Soren Aabye Kiekegaard, nascido e crescido no restrito ambiente cultural da Dinamarca de então. Kierkegaard veio ao mundo em 5 de maio de 1813, em Copenhaga. Seu pai, comerciante, desposara em segunadas núpcias sua própria doméstica. Ao contrário do primeiro casamento, que fora infértil, o segundo foi fecundo de nada menos que sete filhos. Soren foi o último dos sete filhos, tendo nascido quando o pai já tinha ciquenta e seis anos e a mãe quarenta e quatro. Por isso, ele se definiu "filho da velhice". Somente Pedro, que depois tornou-se bispo luterano, lhe sobreviveu.
Em sua família, sobretudo no pai, Kierkegaard viu a marca de trágio destino misterioso. Falando de obscura culpa do pai, ele afirma que a revelação dessa culpa constituiu para ele o "grande terremoto"de sua vida. Em 1844, no seu Diário, fala de "relação entre pai e filho, na qual o filho descobre involuntariamente tudo o que está por detrás dos bastidores, mas sem ter a coragem de ir até o fundo. O pai é homem estimado, piedoso e austero. Somente uma vez, em estado de embriaguez, escapam-lhe algumas palav ras que fazem suspeitar de coisa mais horrenda. O filho não consegue sabê-lo por outra via. E não ousa nunca perguntar sobre o assunto ao pai ou a outras pessoas".Talvez a culpa secreta do pai tenha sido a "maldição"que lançara, quando menino, contra Deus na deserta charneca de Jutland e que ainda não esquecera com a idade de oitenta e dois anos. Ou então o "pecado com Betsabéia", cometido com a doméstica poucos meses depois da morte da primeira mulher. Seja como for, a imprevista revelação da culpa do pai representaria para Kiekegaard uma como que lâmpada no escuro, que lhe permitiria a compreensão profunda do mistério de sua vida.
Escreveu ele: "Foi então que tive a suspeita de que a avançada idade do meu pai não fosse uma bênção divina, mas muito mais uma maldição, e que os eminentes dons de inteligência de nossa família nos houvessem sido dados só para que se extirpassem um ao o utro. Então senti o silência da morte crescer em torno de mim: meu pai apareceu-me como condenado a sobrevivier a todos nós, como cruz funérea plantada sobre o túmulo de todas as suas próprias esperanças. Alguma culpa devia pesar sobre a família inteira, pois um castigo de Deus pendia sobre ela: ele devia desaparecer, derrubada ao solo pela divina onipotência, cancelada como tentativa malograda(..)"A relaçao de Kierkegaard com o pai e com a família é uma "cruz", uma dolorosa relação religiosa vivida sob a marca do castigo de Deus. É relação voltada para algo de culpado e pecaminoso, que bloqueou a tentativa de Kierkegaard de se realizar no ideal ético e impediu-o de casar com Regina Olsen ou de tornarse pastor. Regina Olsen, filha de alto funcionário, tinha dezoito anos quando, em 1840, com vinte e sete anos, Kierkegaard pediu-a em casamento.
A doze anos de distância do seu primeiro encontro com Regina, eis o que Kierkegaard ainda escreve dela: "Era jovem deliciosa, de natureza amável, como que feita de propósito para que uma melancolia como a minha pudesse encontrar no encantá-la a sua única alegria. Ela estava verdadeiramente graciosa na primeira vez em que a vi: graciosa no seu abandono, era comovente em sentido nobre, não sem certa sublimidade no último momento da separação. Infantil do princípio ao fim, malgrado a sua cabecinha esperta, uma coisa sempre encontrei nela, algo que, para me, vale como elogio quando pedia, que teria podido comover até as pedras. Teria sido uma bem-aventurança poder encantar-lhe a vida e uma bem-aventurança poder ver a sua bem-aventurança indescritível."Essa atormentada recordação que o apaixonado tem de sua jovem amada testemunha o profundo significado da presença de Regina na vida de Kierkegaard. Sua relação com Regina foi a sua "grande relação". E, no entanto, ele não conseguiu concluir o noivado: "Pedi uma conversa com ela, que aconteceu na tarde de 10 de setembro. Não disse uma palavra sequer para iludi-la: consenti(...). Mas, no dia seguinte, no meu íntimo, vi que me tinha enganado. Um penitente como eu, com a minha vida ante acta e a minha melancolia... já devia ser o bastante. Naquele momento, sofri penas indescritíveis(...). O rompimento definitivo ocorreu cerca de dois meses depois. Ela se desesperou(...)"Mais tarde, Regina casou-se com certo Schlegel e teve matrimônio tranquilo. Mas Kierkegaard não a esqueceu: no fundo, continuou esperando que a oposição do mundo de que ele era vítima talvez lhe conferisse "novo valor"aos olhos de Regina. Além disso, os pontos decisivos. Como aquele general que comandou pessoalmente os que o fuzilavam, em também sempre comandei quando devia ser ferido (...) O pensamento (e isso era amor) era: eu serei teu ou ter será permitido ferir-me tão profundamente, no mais íntimo da minha melancolia e na minha relação com Deus que, ainda que de ti separado, continuo sendo teu".
O conteúdo daquel ano de noivado, observa Kierkegaard, "no fundo, nada mais foi para mim do que sequela de penosas reflexões de consciência angustiada. Perguntava-me: ousarias noivar, ousarias te casar? Que estranho! Sócrates fala sempre do que havia apr endido com uma mulher. Também eu posso dizer que devo tudo o que tenho de melhor a uma moça: não o aprendi dela, propriamente, mas por causa dela".Na opinião de Kierkegaard, um penitente, alguém que abraçou o ideal cristão da vida, com toda aquela tremenda seriedade que o cristianismo comporta, não pode viver a tranquila existência de homem casado. Ele não pode aceitar o compromisso mundano e a gra tificante inserção na ordem constituída. Regina não podeia tornar-se sua esposa "porque Deus tinha a precedência". E essa também é a razão por que Kierkegaard a tornar-se pastor.É ainda aía, na fé que relativiza todas as coisas humanas e que não pode ser reduzida à cultura, que Kierkegaard se lança à ruína, em violenta polêmica contra a cristandade de sua própria época. O bispo luterano Mynster - que, à renovação da vida crstã, como Kierkegaard a entendia, opôs a defesa da "ordem constituída"- morreu tranquilamente em fins de janeiro de 1854 e, homenageado por seu povo, foi celebrado por seu sucessor, Martensen, como "um elo da cadeia sagrada que liga entre si as testemunhas da verdade". Mas, em polêmica com Martensen, Kierkegaard se pergunta: "O bispo Mynster era testemunha da verdade, uma daquelas verdadeiras testemunhas: será isso verdade?"A verdade, para Kierkegaard, era que não poderia ser celebrado como "testemunha da verdade quem viveu desfrutando a vida, ao abrigo dos sofrimentos, da luta interior, do medo e do temor, dos escrúpulos, das angústias da alma e das penas do espírito (...) .
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